Já parou para pensar a relação entre a dita “comida brasileira” e o arranjo que estrutura o mito da democracia racial? Então vai dizer que nunca ouviu uma narrativa sequer, na qual essa “tal” fosse tomada como símbolo de perfeição ou verdadeira virtude da mistura racial?
Quando Silva (2005) registra “É […] na cozinha da casa grande, que se verificam as possibilidades de mistura dessas culturas diversas: é neste encontro que os ingredientes disponíveis darão origem a novos pratos, de aroma e paladar ainda desconhecidos”, não se enganem. Está a mencionar a cozinha como espaço que concretiza a miscigenação harmoniosa entre povos que viviam mediados pela colonização. A colonização e sua herança são máquinas de moer gente. Você ainda duvida?
A afirmação de supostamente existir uma convivência melodiosa na relação concreta da sociedade brasileira, como se pessoas pretas e brancas desfrutassem de iguais oportunidades de existência, é o mito da democracia racial, disse Abdias Nascimento. A comida da mistura racial romântica é um carrego colonial, uma narrativa bem temperada com mentiras, propagada por séculos, envolta num marinado de doçura maldita, que dissimula o amargor de uma política de invenção do outro, do não sujeito, cuja cultura e a alma se desejava devorar. Porém, diziam eles: civilizar.
Se for falar de comida brasileira, tem que colocar na mesa as barbáries, as apropriações culturais mas, sobretudo, as resistências. Muita resistência! Caso contrário estaremos a fortalecer uma ideia de horizontalidade ilusória. No jogo paritário, os exploradores assumiram a narrativa dos heróis, uma espécie de poderoso rio que absorveu os pequenos confluentes indígenas e africanos. Confere aí, nos seus livros sobre a história da alimentação brasileira, se o cardápio europeu não aparece como referência e dos povos africanos e indígenas postos como periféricos em contribuição. Vai mesmo engolir essa injustiça cognitiva a seco, achando que houve uma espécie de colaboração com os ingredientes substitutivos aos originais europeus ou o emprego de técnicas para ajudar a aproximar as preparações da “matriz civilizatória”?
Vamos colocar a comida na encruzilhada para denunciar o código das relações sociais do Brasil. No racismo à branquitude brasileira as preparações são servidas no mesmo prato, se aproximam, desde que haja hierarquia bem definida do prato principal. Fazem os acompanhamentos serem servidos ao lado, desde que sempre periféricos. Haveria metáfora mais reveladora para expressar o disfarce pusilânime do prato à moda da casa? Um apelo à mestiçagem étnico-cultural que não repudia a predominância de valores culturais europeus.
Vamos transgredir os parâmetros injustos, desencadeirar a supremacia branca e celebrar as mãos afromeríndias que alimentam a vida com inventividade, inteligência, respeito à sociobiodiverdidade, em biointeração. Devemos dar estrelas as corpas autoras das preparações cheias de sabor, as mestras combinações, as guardiãs das sementes, de técnicas e tecnologias ancestrais. Vamos anunciar aquelas que transitam entre as cozinhas e os quintais, que pedem licença para entrar na mata, contam a lua para plantar, colher, parir. As que preparam no fogão o feijão e o banho que cura, fazem o azeite e usam pilão. Transformam folha da bananeira em assadeira, refogam a bertalha e a taioba, antes que estas fossem apelidadas de não convencionais.
Depois de secar a saliva, quem quiser ficar com a história única, deve correr o perigo da ficção. As cozinhas brasileiras, as que alimentam com sabedoria e nutrição, tem donas. E não são as Bentas, elas se chamam Benés.